11 janeiro 2007

Petrópolis, 20 de julho de 1968

"Amigos como prometi ontem, vou contar algumas coisas que sei e tive participação ligada a esta corrida. Contarei apenas coisas inéditas, de bastidores, de box e algumas incríveis coincidências que não estão no site Obvio onde fala sobre esta corrida, para enriquecê-los mais com informações deste nosso mundo automobilístico que, sinto, vocês gostam tanto.

Bem, pessoas não ligadas a nós devem ter estranhado que meu irmão Sérgio Cardoso e eu deixamos de participar de algumas corridas.

Acontece que ele dentro de uma Rural Willys, levou um tiro na cabeça de um assaltante de carros, ficando 13 dias em estado de coma.
Sua recuperação foi lenta, ficando com a parte esquerda do rosto paralisada e outros movimentos do corpo bem prejudicados. Ficando inclusive com pouco equilíbrio, devido isso.
Só se salvou devido um excelente neurocirurgião, Dr.Max Carpin, tê-lo operado no IBIC, em Botafogo, RJ. Naquela época Instituto Brasileiro de Investigações Científicas.
Ele foi tendo melhora progressiva e já estava ansioso para voltar às corridas.
Quando apareceu no calendário esta corrida de rua de Petrópolis, eu que havia assisitido uma corrida com ele em anos anteriores e gostamos muito, falei com ele para corrermos em dupla, cada um guiando metade da corrida.
Ele se consultou com Dr. Max Carpin e este o liberou, dando atestado e resolvemos correr.
Sexta-feira, antevéspera da corrida, estávamos na garagem lá em casa, junto com mecânico e amigos.
Ele fala: - Tô com uma vontade de tomar uma dose Whisky, (ele gostava, eu acho horrível, se tomo um gole me arrepio todo, gosto mesmo é de uma cervejinha).
Procurou em casa, não tinha.
Aí falou pra nós: -Vou comprar uma garrafa na Freguezia, bairro próximo.
Abriu o bolso e continuou : - Ih, rapaz, tô com pouco dinheiro. Compro ou não?
E de brincadeira falou : - Posso morrer na corrida e vou ficar com água na boca. Querem saber de uma coisa, mais vale um prazer, vou comprar.
E assim fez. "

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"Sábado, de manhã, véspera da corrida, fomos ao Autódromo de Jacarepaguá, experimentar a Alfa.
Nisto, com Sérgio ao volante, na curva Norte, estourou um pneu dianteiro, amassando bastante o aro.
Ele conseguiu controlar o carro sem sair da pista, embora estivesse andando fortíssimo.
Como não havíamos levado roda reserva, Joaquim, motorista da Kombi de nossa equipe, foi à nossa casa pegar outra. Com isso perdemos bastante tempo nos atrasando para os treinos de Petrópolis.
Depois que ele chegou, experimentamos, e estava tudo certo.
Como estávamos atrasados, ficou combinado que eu iria levando a Alfa junto com seu mecânico, Antonio da Memória, e ele iria em casa almoçar rapidamente com sua noiva e nos encontraríamos lá.
Ele me falou para ir treinando, visto que nunca havíamos corrido lá. Assim que chegasse faria o mesmo.
Quando chegamos perto do Boulevard (me esqueci o nome, é aquele restaurante redondo suspenso), surpresa desagradável... havia chovido muito naquela semana, caíra barreira e a pista de mão dupla ficara interditada por 40 minutos, dando passagem para quem estava descendo, depois faziam o mesmo para quem estava subindo.
Bem, ficamos parado 40 minutos ali.
Quando chegamos no circuito, já havia acabado a sessão de treinos livre. Wilson Marques Ferreira que tb chegou atrasado com a Alfa Zagatto, conversou comigo nos boxes: - Vc viu? Está apinhado de gente. Tive que ir pros boxes bem devagar, as pessoas querendo ver os carros forçavam as cordas estreitando a pista.
Respondi : - Aconteceu o mesmo comigo.
Nos boxes procuramos a Direção da Prova, contamos o motivo do atraso, pedimos se poderiam abrir uma pequena excessão, deixando-nos dar ao menos uma volta no circuito para conhecermos, mas nos foi negado. Pedimos a outros e nada. "

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"Wilson Ferreira, então, me chamou para irmos num barzinho tomarmos uma Coca-cola.
Quando estávamos tomando a Coca, um senhor bem humilde, de chapéu de palha, fumando um cigarrinho tb de palha, vendo-nos de macacão de corrida, timidamente, falou pra mim : - Moço, desculpa. O senhor vai participar desta corrida?
Respondi : - Sim.
Ele : - Meu filho, joga isso fora! Apontando para o chaveiro em minha cintura que era de meu irmão e estava com a chave de ignição da Alfa.
Olhei pro chaveiro e só naquela hora percebi que era uma caveira com um capacete.
Respondi : - Ok, fique tranqüilo, é de meu irmão, quando ele chegar falarei com ele.
O Sr. insistiu bastante, dizendo que aquilo dava azar.
Voltamos pros boxes e, surpresa... Sérgio estava lá com sua noiva.
Perguntei : - Como vc está aqui?
Ele estranhando : - Ué, vim dirigindo. Qual o problema?
Eu : - Mas você ainda foi em casa almoçar e nós viemos direto!
Ele pensou um pouco e teve o estalo : - Já sei! Vocês pegaram a barreira fechada!
Eu : - Sim.
Ele : - Pois é, quando cheguei lá estava aberta, vocês perderam 40 minutos e nós não.
Bem, ficou tudo certo.
Ele ficou um bom tempo conversando com Luisinho Pereira Bueno e sua ex- esposa, que queriam saber como estava sua recuperação, etc. Até que chegou a hora de tirar tempo de classificação.
Ele me perguntou: - Quem vai, vc ou eu?
Eu : - Tanto faz, deixa eu ir.
Ele : Ok.
Aí contei a ele a conversa do senhor do bar e comecei a tirar a chave do chaveiro.
Ele : - Deixa de frescura!
Tomou o chaveiro de minha mão e falou : - Vou eu! Não vai tirar droga nenhuma, isso é bobagem.
Nesta época, alinhavam três carros de cada vez.
Lembro-me que estavam alinhado Mário Olivetti com sua GTA e tinha um outro carro, me esqueço qual agora, acho que era um Malzoni, talves do Celso Gerbassi.
Sérgio alinhou do lado direito da pista, bem perto dos boxes.
Fui ao lado de meu pai que falou pra ele já dentro do carro : - Quando derem o sinal, deixa os outros dois irem na frente, faz a primeira volta bem devagar pra conhecer o circuito , não se esqueça que Mário Olivetti mora em Petrópolis e conhece bem a pista.
Na segunda aperta um pouco mais e somente na terceira tire tempo, mas mesmo assim não vá andar no limite. Lembre-se que tem uma corrida inteira para conhecer bem a pista.
Os três carros sairam e perdemos de vista, visto que logo após os boxes, havia uma curva pra esquerda e as casas encobriam a visão.
Quando eles vem na primeira volta, Olivetti vem bem embalado e Sérgio colado na traseira dele, no vácuo.
Nós todos olhamos uns pros outros e meu pai disse : - Seu irmão não tem juízo!

Os dois entram embalados nesta curva , ouvimos o som das reduzidas em belos puntatacos e, imediatamente, aparece um bandeirinha agitando nervosamente a bandeira branca, chamando a ambulância.
Fui o primeiro de nossa equipe a correr pra lá. Nisto ia ouvindo dos assistentes : - Morreu ! Morreu! Morreu!
Quando avistei nossa Alfinha toda destroçada, o teto afundado, a lateral onde estava meu irmão imprensando-o contra o poste, minhas pernas começaram a bambear, não tive coragem de chegar perto.
Parei ali mesmo, fiquei sentado num muro de uma casa com a cabeça voltada para a direção dos boxes, a fim de não ver o que estava acontecendo à minha esquerda.
Lembro-me perfeitamente de ver meu pai e o padrinho do Sérgio correndo pra lá. Quando avistaram a gravidade do acidente vi suas fisionomias mudarem imediatamente, deram uma meia parada e com muito esforço um ia convencendo o outro a ir andando em direção ao local. .
De vez em quando dava uma olhada rápida, lembro-me também dos bombeiros lutando contra o tempo para tirarem-no de lá e Mário Olivetti parando sua Alfa e oferecendo para asim que conseguirem colocarem-no em sua Alfa que iria mais depressa pra o hospital.
Já no hospital, Wilsinho Fittipaldi que decidira não correr com o Fitti-Porsche, devido não haver condições de correr com ele no piso de paralelepípedo, foi o primeiro a se oferecer para doar sangue caso fosse preciso. Depois apareceram vários outros pilotos nos oferecendo a mesma solidariedade.
O que todos nós percebemos é que a medida que os anos foram passando os carros foram ficando mais possantes e aquele circuito de rua não tinha mais condição de oferecer segurança a eles.

Horas depois do Sérgio dar entrada no hospital, meu pai com face triste, me chama num canto, diz que os médicos disseram que o caso era gravíssimo, me pede para ir em casa trazer minha mãe, ir preparando ela, dizendo que o caso era grave, mas não dizer que era gravíssimo.
Perguntei se ele havia falecido, respondeu-me que não, mas pensei que estivesse me enganando.
Eu e dois amigos de nossa equipe descemos Petrópolis em direção ao Rio, onde fui dirigindo nossa Kombi.
Todos nós com lágrimas rolando, achávamos que Sérgio havia morrido, que meu pai não quisera nos dar aquela notícia."

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"Chegamos em casa, falamos com minha mãe como ele pediu.
Interessante que como ela havia passado por uma situação parecida há pouco tempo atrás com o tiro que meu irmão havia levado na cabeça e não morrido, pensou que aconteceria o mesmo e fez uma mala com pijamas, escova de dentes, etc, pensando que ficaria umas semanas no hospital, inclusive comentou isso conosco.
Quando acabamos de subir a serra, ela nos pediu pra ir no banheiro.
Paramos, entramos num restaurante e enquanto ela se dirigia ao banheiro, havia um rádio ligado com volume alto e o locutor estava falando : -O piloto Sérgio Cardoso está agonizante no hospital, etc.
José Américo, amigo e companheiro de equipe, correu em direção ao balcão e pediu para eles abaixarem o volume, pois aquela senhora que havia entrado no banheiro era a mãe dele. Eles assim fizeram.
Quando ela saiu não entendeu pq todos estavam olhando-a, dos garçons aos clientes.
Chegamos no hospital e encontramos bastante amigos, pois algumas emissoras de rádio do Rio estavam noticiando o acidente.
Já tarde da noite, um amigo Juremy Batista que havíamos encontrado lá quando chegamos, pois também havia ouvido a notícia numa rádio do Rio, conseguiu entrar onde estava Sérgio e nos deu a notícia de que ele só se mantinha vivo devido a remédios e equipamentos.
Disse-nos que havia um marcador de batidas de coração, não como estes modernos de hoje, mas como um pêndulo de relógios antigos.
Disse-nos que a medida que o pêndulo ia parando, os médicos aplicavam uma injeção e o pêndulo voltava a balançar mais veloz.
Numa hora eu falei : - Poxa, se Dr. Max Carpin estivesse no Brasil - ele à convite estava residindo nos EUA - quem sabe não poderia salvá-lo? Já fez isto uma vez.
Aí, a madrinha de Sérgio falou : - Olha, às vezes, ele vem visitar a família. Quem sabe não está no Brasil?
Ligamos pra casa, pegamos o telefone dele e a madrinha ligou.
Com uma esperança enorme, veio nos dar a notícia que ele estava, havia falado com ele, e já estava a caminho.
Neste momento todos nós ficamos esperançosos.
Quando ele chegou, sua imponente figura alta e gorda, nos trouxe mais esperanças.
Passado uns 40 minutos ele sai em companhia de meu pai e Juremy, todos de cabeças baixas.
Nos entreolhamos e pensamos que Sérgio havia morrido.
Fomos falar com o Dr. e ele nos falou que ainda estava vivo, mas que, infelizmente, não havia saída, os danos foram muitos, irreversíveis, que ele só estava vivo por causa dos equipamentos e medicação, e, mesmo que sobrevivesse, o que ele achava quase impossível, ficaria cego, paralítico, abobalhado etc.
Bem, passamos a noite dentro dos carros no estacionamento e já no final da madrugada ele faleceu."

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"Quando o dia clareou, um amigo da equipe sugeriu que fôssemos a um bar em frente ao hospital tomar café e comer um sanduíche, visto que estávamos sem comer desde a tarde anterior.
Chegando lá havia um rádio ligado com transmissão direta do Circuito de Petrópolis.
Coisa de meio minuto após chegarmos, o locutor anuncia um minuto de silêncio pela morte do piloto Sérgio Cardoso.
Todos choramos uníssonos, o dono do bar ficou sem entender, aí um amigo de nossa equipe esclareceu-o.
Meu pai ficou tratando do translado do corpo para o Rio, etc.
Ainda no bar, pelo rádio, ficamos sabendo do acidente com Cacaio e a suspensão da corrida.
Dali a poucos minutos, chegam no mesmo hospital Cacaio e nossos amigos pilotos.
Oferecemos-nos a ajudá-los no que fosse possível, embora, na verdade, diante da gravidade do fato, constatamos que não podíamos fazer nada.
Só nos restou voltar para o Rio, acompanhando o cortejo de meu irmão.
Cacaio ficou uns 39 dias lá, fiz umas quatro ou cinco visitas, não a ele, pois não podia entrar na sala de emergência, mais para levar minha solidariedade a seus parentes e amigos, sendo que numa delas encontrei Norman Casari.
Mais tarde num próximo encontro com Norman, percebi em sua conversa que ele estava diferente, ele me falou que numa das idas a Petrópolis, não me lembro agora se foi numa dessas visitas, na subida da serra havia derrapado n'água com sua moto e batido com a cabeça no meio fio.
Muitos anos depois, um dia em que estava acompanhando Nelson Piquet, nesta época na FI, ele estava dando uma palestra no Centro Empresarial de Botafogo, cumprindo agenda de seu patrocinador.
De repente, sou surpreendido quando ele olha pra mim e me faz uma revelação, diz que era um rapazinho ainda, estava lá em Petrópolis, assistiu o acidente de meu irmão e o do dia seguinte.
Bem, amigos, termina aqui o relato que, por razões óbvias não saiu na imprensa, nem era assunto pra sair, mas como sei que vocês, assim como eu, são ávidos por tudo que diz respeito ao automobilismo, resolvi compartilhá-lo."

Sergio Cardoso - Piloto.

2 comentários:

Dudu Nicodemus disse...

Estive nesta corrida (assistido, moleque), como em anteriores. Foi um dia lamentével do qual jamais esquecerei

Unknown disse...

Eu estava nessa corrida com um ano e 359 dias de idade (Faria aniversário no dia 21). Apesar disso lembro de alguns "Flashes" .
Estava com meus pais e minhas irmãs sobre uma marquise bem próximo de onde bateu o Bino do Carol Figueiredo.
Quando a corrida foi suspensa a pista foi invadida e junto com meu pai nos aproximamos dos carros e um piloto permitiu que eu entrasse em seu carro (Um DKW)